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quarta-feira, 6 de julho de 2011

O Desastre do Mar de Aral

Não, os barcos não são de brinquedo. Isto tudo já foi água além de onde a vista alcança.

O Mar de Aral já foi o 4º maior lago do planeta, com área de 68.000km² (quase do tamanho da Irlanda) e 1.100 km³ de volume de água. Ele e seu companheiro mais próximo e maior, o Mar Cáspio, são "restos" geológicos de um grande mar interior que dominava a paisagem russa milhões de anos antes e que retraiu-se, deixando-os como lembrança de sua passagem. Seu nome significa mar das ilhas e está (ou estava, dependendo do contexto) situado no que hoje é a divisa do Uzbequistão com o Cazaquistão, mas a triste história de seu fim tem origem quando estes dois países ainda eram parte da grande  URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Tudo começou quando os soviéticos declararam como kolkhoses (zonas agrícolas coletivas) as estepes da Ásia central. Como parte do plano, tiveram a "brilhante" ideia de desviar Amu Darya e Sir Darya, os 02 rios que alimentavam o lago, para irrigar as plantações de algodão e cereais diversos.
Já repararam nisso? O homem tem que ver "motivos econômicos" para um lugar ou ser vivo. Não importa que eles simplesmente sejam importantes apenas por existir ou pelo valor de sua própria vida,  precisam nos dar lucro. Se não, não têm serventia. Isto inclusive me foi ensinado na própria universidade: ao se propôr uma área ambiental protegida, se faz necessário mostrar sua "importância econômica", a fim de que haja real interesse em se preservá-la.


Pilha de algodão no Uzbequistão. O progresso inicial "escondeu"
a maior catástrofe ambiental da história da humanidade.

Mas voltemos ao Mar de Aral. Verdade seja dita, a cultura algodoeira prosperou. Essa parte do plano deu certo, e o Uzbequistão se tornou o 3º maior produtor mundial da fibra. O desaparecimento do lago não foi nenhuma surpresa para os soviéticos, e inclusive esperava-se que acontecesse muito antes. No início de 1964, Aleksandr Asarin, do Hydroproject Institute, afirmara: "era parte do plano (...) aprovado pelo Conselho de Ministros e pelo Politburo. Ninguém em um nível inferior se atreveria a dizer uma palavra os contradizendo, mesmo que significasse o destino do Mar de Aral". Assim, eles convenientemente "não se deram conta" (aham!) de que o desvio dos rios, a vasão d'água e a construção dos canais foram extremamente mal calculados. O maior canal, chamado Qaraqum, perdeu entre 30% e 75% de toda a água que desviou. Mesmo hoje, apenas 12% do comprimento total do canal de irrigação do Uzbequistão é impermeabilizado. A maior parte da água evaporava ou vazava antes de chegar às plantações, mas a prioridade dos soviéticos sempre foi manter o comércio de algodão, arroz e outros cereais em detrimento de qualquer outra coisa.

Na década de 60 o nível do lago baixava, em média, 20cm anuais; nos anos 70, aumentou para 50cm e, nos anos 80, absurdos 90cm! Em 1987 o lago se dividiu em dois: Aral Norte e Aral Sul.

Progresso da desertificação do lago.

Em 1991, o Uzbequistão conquistou sua independência, assim como várias outras ex-repúblicas após o colapso da União Soviética. Mas manteve-se nos mesmos erros de seus predecessores: os agricultores não se valeram da rotação de culturas e empobreceram o solo de tal forma que tiveram de entupí-lo com quantidades assombrosas de pesticidas e fertilizantes. O solo ao redor é insuportavelmente poluído e as pessoas que vivem na área sofrem com a falta de água potável e problemas de saúde, incluindo as altas taxas de câncer, doenças pulmonares (incluindo a tuberculose), transtornos digestivos, anemia e infecções, além de problemas nos rins, fígado e olhos. Os problemas de saúde gerados pela poluição do lugar estão associados com a alta taxa de mortalidade (75 em cada 1.000 recém-nascidos e 12 em cada 1.000 mulheres durante o parto). Culturas agrícolas na região são destruídas pelo sal sobre a terra.

O lago secava a olhos vistos e no verão de 2003 a parte sul foi dividida em bacias ocidental e oriental. Em 2004, a salinidade original havia quintuplicado, aniquilando quase toda a flora e fauna naturais que ainda resistiam. Em 2007 90% de sua área original já estava perdida, e o Aral Sul começou a ceder lugar para o Aralkum, um deserto de sal que está se formando no que era antes o leito do lago. Quanto à água que ainda resta ali, a salinidade aumentou para níveis superiores a inacreditáveis 100g / litro só para efeito de comparação, a concentração de sal na água do mar é de 35g / litro.

Bóia de sinalização. O Mar de Aral já teve quase 70 metros
de profundidade. Hoje, sua parte mais profunda mal chega aos 30.

O ecossistema do Mar de Aral e os deltas de rios que o alimentavam foram destruídos, e o recuo das águas deixou enormes planícies estéreis cobertas de sal envolto em produtos químicos tóxicos resultado de testes bélicos (havia um laboratório secreto de armas biológicas em Vozrozhdeniya, uma de suas ilhas), dejetos industriais, pesticidas e escoamento de fertilizantes que tornam impensável o consumo da pouca água que ainda resta nas adjacências.  Até mesmo o ar que sopra na região é venenoso, pois as vastas planícies de sal exposto, aliadas ao vento e à falta da água que as continham,  produzem nuvens de poeira tóxica que se espalham pela região.

A outrora rica natureza às margens do lago foi devastada – das 173 espécies que habitavam suas margens apenas 38 conseguiram resistir. Apesar de sua fauna de peixes sempre ter sido muito pobre em variedade, com pouco mais de 20 espécies, o estoque era tão abundante que a indústria pesqueira do Mar de Aral era responsável por 1/6 de todo a produção da URSS e empregava 40.000 pessoas. Com o secamento do lago a atividade acabou, gerando enormes dificuldades para a população local. A cidade de Mo'ynok, ao sul no Uzbequistão, possuía um movimentado porto pesqueiro que agora é um gigantesco cemitério de navios enferrujados a muitos quilômetros da atual costa do lago.

Todos esses peixes um dia existiram no Mar de Aral. Hoje, apenas o linguado Platichthys flesus (que não é nativo) ainda resiste.

Como se não bastasse o desaparecimento da água, os peixes do local sofreram com a invasão de espécies introduzidas. Este problema (mais um...) iniciou-se em 1957 com introduções acidentais e "planejadas" no Mar de Aral. Mais de 20 espécies de peixes foram introduzidas e a maioria deles se estabeleceu muito bem. Atualmente, todos (à exceção do linguado Plathichtys flesus) foram eliminados. A 2ª crise dos peixes nativos começou em 1971, quando a salinidade da água aumentou acima de 14g / litro e mais uma leva de espécies desapareceu. A terceira ocorreu em 1986, quando a salinidade excedeu 25​​g / litro, e dessa vez todas as espécies de água salobra foram extintas. Em 1989, quando a seca dividiu o lago em 02 partes, apenas 07 espécies de peixes (nenhuma nativa), 10 de zooplâncton e 11 de organismos bênticos permaneceram. TODAS as espécies de peixes originais do lago foram exterminadas. Como dito anteriormente, hoje o único que consegue viver no lago é aquele linguado. Introduzido. E ainda assim cada vez mais raro.

Mas como dito antes, a economia da região entrou em colapso com o desaparecimento da água, que também alterou o clima local: a temperatura média subiu 1,5ºC, provocando verões ainda mais quentes e secos – e invernos mais frios e demorados. E, como num círculo vicioso, a temperatura elevada faz as plantações do entorno necessitarem de mais água, que vai sair de onde? Do Mar de Aral...
Mas não, não para por aí! As plantações alteraram seus ciclos com a mudança climática local, diminuindo a própria produtividade. Ou seja: tira-se ainda mais água para produzir-se cada vez menos.

Outra espécie que foi extinta na região foi o rato
almiscarado (Ondatra zibethicus), que vivia nos
deltas dos rios que desaguavam no lago e fôra
caçado na ordem de 0,5 milhão por ano para
fazer casacos de pele.


Como alento, o Aral Norte tem recebido alguma atenção e cuidado. Em 1992 foi fundada a Comissão Interestadual de Coordenação da Água da Ásia Central (ICWC) formada por 05 países da Ásia Central próxima ao lago na esperança de resolver os problemas ambientais e sócio-econômicos na região do Mar de Aral.
Como resultado, em 1993 foi criado o IFAS (Fundo Internacional para o Mar de Aral) para arrecadar fundos para os projetos na bacia do lago. O programa até apresenta algum resultado positivo, mas esbarra na burocracia e na demora de sua aplicação, retardando assim seus progressos.
Em 1994 os governos do Cazaquistão, Uzbequistão, Turcomenistão, Tajiquistão e Quirguistão assinaram um acordo para garantir que 1% dos seus orçamentos fossem destinados a projetos de recuperação do Mar de Aral.
Em 2000 a UNESCO apresentou um trabalho chamado Visões Relacionadas à Água da Bacia do Mar de Aral para o Ano de 2025 no II Fórum Mundial da Água, em Haia, Holanda. Mas o documento foi criticado por estabelecer metas por demais espetaculares, e também por não dar atenção suficiente aos interesses da área outrora às margens do lago.
Em 2006 os projetos de restauração do Banco Mundial, especialmente no Aral do Norte, deram algum resultado: a construção da barragem de Kokaral separando as duas partes do lago fez com que o nível do Aral Norte subisse 12m em 05 anos, ao mesmo tempo em que a salinidade diminuía. Os peixes retornaram, e seu estoque chegou a um nível em que a pesca comercial pode voltar a ser pensada.

Guarde os logotipos bonitinhos e seus nomes: Uzbekneftegaz, Korean National Oil Corporation, China National Petroleum Corporation, LUKoil Overseas e Petroliam Nasional Berhad. São estas companhias que vão terminar de destruir o Mar de Aral.


Contudo o Aral Sul, que fica na parte mais pobre do Uzbequistão, foi abandonado à própria sorte. Existem projetos que poderiam ajudar, mas o governo do Uzbequistão não mostra nenhum interesse em abandonar o rio Amu Darya como fonte de irrigação do algodão, e faz ainda pior: Ergash Shaismatov, o Vice-Primeiro-Ministro uzbeque, anunciou em 2006 que o governo e um consórcio internacional reunindo a estatal Uzbekneftegaz e também empresas de Rússia, Malásia, Coréia do Sul e China assinaram um tratado de partilha para construir e explorar campos de petróleo e gás no leito do Aral Sul. Em 2010 já eram extraídos 500.000m³ de gás diretamente do leito seco do lago.

Vice-Primeiro-Ministro uzbeque, Ergash Shaismatov, ao lado
do Vice-
Primeiro-Ministro da China, Li Keqiang, em 2009: "O
Mar de Aral (...) promete em termos de petróleo e gás. Existe
um risco, mas acreditamos no sucesso deste projeto único".

Ou seja: de fato não há interesse na recuperação do Mar de Aral. A merda foi tão grande que se tornou  praticamente irreversível. O que aconteceu ali é considerado o maior desastre ambiental de todos os tempos, a primeira grande modificação humana possível de ser plenamente vista do espaço.

E não pense o(a) leitor(a) que este foi um caso isolado! No Iraque a drenagem dos pântanos da Mesopotâmia também resultou numa catástrofe ambiental; mesma coisa com os lagos da Bacia de Sistan, entre Irã e Afeganistão; na África, o Lago Chade também já está quase seco por causa de projetos de irrigação na Nigéria e no Chade; o Mar Morto, em Israel, está secando em virtude do desvio da água do rio Jordão ao sul; mesma coisa com os lagos Tulare e Mar Salton, nos EUA... No Brasil, temos a ameaça de Belo Monte que não é um projeto de drenagem mas também vai afetar horrorosamente o ciclo de escoamento da água do rio Xingu, no Mato Grosso.


Quero terminar deixando estas palavras, para pensar:

O homem já revolveu mais terra e rocha do que qualquer outro evento geológico em toda a história da Terra.Todos os anos, uma área de floresta quase do tamanho da Escócia é varrida do planeta. Ou seja, além de estarmos sufocando o mundo com dióxido de carbono, estamos lhe minando a capacidade de resolver o problema.
Contudo, a Terra é muito resistente. Uma floresta pode ser totalmente devastada, mas se recupera em alguns milhares de anos.
O mundo, a longo prazo, vai ficar bem... a humanidade, não.

Não é o planeta que está em perigo. Somos nós.



Para saber mais:

6 comentários:

  1. Excelente artigo. E veja que nas revistas (da Abril, principalmente) há várias propagandas defendendo a Usina de Belo Monte. Mas aqui digo que os problemas vão muito além de irrigações:

    http://nihil-lemos.livrespensadores.org/pensamento/usinas-hidreletricas-razoes-para-nao-querer-ter-uma-perto-de-sua-casa/

    Sobre o mar de Aral, me resta lamentar. A exploração indiscriminada acabará com o que pouco resta daquele poderoso imprério soviético. A China caminha para o mesmo caminho.

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  2. E locais assim, que passam por tamanha exploracao, se tornam mais e mais miseráveis. É triste por que isso vai se repetir mais e mais, aqui e ali. A manutencao da nossa civilizacao vai se tornar cada vez mais difícil, mais cara (em todos os sentidos) e por fim impossível! É tao óbvio que dói, mas a grande maioria prefere ignorar.

    Fran

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  3. Para salvar o homem é necessário destruir a natureza. Para salvar a natureza é necessário destruir o homem. Salve-se quem puder. Fobias.

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  4. o homem conseguiu mais uma vez destruir a natureza e o que ja foi o quanto mais lago do mundo e muito triste.

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  5. "Foi por ter sido pisado por muitos pés que me tornei um bom vinho!"
    (Carlos Kurare)

    Parabéns pela matéria. Achei-a muito esclarecedora. Deixarei um link do seu blog no meu, faça-me uma visita, caso não aceite o link, por favor, avise-me que o retiro.
    Um abraço!

    Carlos Kurare

    http://www.carloskurare.blogspot.com.br/

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  6. nossa o que o homem pode destruir? só por dinheiro, interesses economicos, um mundo extremamente capitalista que já está gerando consequecias e vai gerar ainda mais.

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